Literatura afro-brasileira: como inclui-la na educação desde os Anos Iniciais

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Por que é importante promover, desde a infância, um ensino-aprendizagem baseado em pertencimentos étnico, racial e cultural?

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Desde 2003, a Lei n. 10.639 tornou obrigatório o ensino da história e da cultura negras e indígenas nas escolas de educação básica. Isso foi feito buscando conscientizar crianças e adolescentes a respeito das relações étnicas e raciais. Nesse contexto, a literatura afro-brasileira funciona como um campo importante para a valorização da identidade, além de ser um apoio para uma formação multicultural, que desconstrua a imagem negativa e inferior ocupada por esses povos no Brasil.

Vamos conhecer um pouco o que é a literatura afro-brasileira e como ela pode desempenhar papéis tão significativos no aprendizado desde os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, que contemplam crianças de 6 a 10 anos.

O que caracteriza a literatura afro-brasileira?

Ainda que não haja consenso entre os estudiosos do tema – visto que alguns consideram essa terminologia limitante, enquanto outros defendem o seu uso no sentido de luta contra uma escrita branca e tradicional –, é possível atribuir algumas características à literatura afro-brasileira.

Eduardo de Assis Duarte, do Programa de Pós-graduação em Letras (Estudos Literários) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta que existem duas questões essenciais. A primeira é o fato de o sujeito da obra, do eu lírico ou de um narrador se autoproclamarem negros ou afrodescendentes, e a segunda é a existência de um olhar não-branco e não-racista. Segundo ele, “[…] tão relevante ou mais que a explicitação da origem autoral é o lugar a partir do qual o autor expressa sua visão de mundo”.

O autor também defende que o tema do texto ajuda a configurar o pertencimento dele à literatura afro-brasileira. Ele diz que a produção “[…] pode contemplar o resgate da história do povo negro na diáspora brasileira, passando pela denúncia da escravidão e de suas consequências, ou ir à glorificação de heróis como Zumbi dos Palmares”, mas que é preciso considerar a temática levando em conta a interação com os outros fatores citados, como autoria e ponto de vista.

Por exemplo: a obra Cidade de Deus (1958) foi escrita por um homem negro (autoria) e narra o dia a dia de uma favela carioca a partir do olhar de Buscapé (ponto de vista), um garoto também negro, pobre e sensível que vive em meio à violência que acomete outros jovens como ele (temática). Em muitos momentos, a narrativa cita Exus e pombas-gira, elementos presentes nas religiões de matriz africana, o que complementa as características de literatura afro-brasileira.

A linguagem e o público também são componentes importantes. No primeiro, consideramos o “[…] vocabulário pertencente às práticas linguísticas oriundas de África e inseridas no processo transculturador em curso no Brasil”, conforme pontua Duarte. Já o segundo é mais subjetivo, pois trata-se da intencionalidade do autor ao atuar como porta-voz de uma comunidade e ao fomentar um papel social da literatura.

Entender o que caracteriza a literatura negra, ou afro-brasileira, possibilita compreender o espaço que ela deve ocupar na formação dos estudantes.

Literatura afrodescendente na sala de aula dos Anos Iniciais

No artigo Educação infantil e literatura: um direito a sonhar, ampliar e construir repertório, os autores lembram um aspecto crucial referente às forças disciplinadoras: a seleção de obras para a educação das crianças fica a cargo das políticas públicas, das escolas e de professores.

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Uma análise das composições dos acervos literários desde a primeira edição do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), de 1999, até o mais recente Programa Nacional do Livro (PNLD), de 2018, mostrou que, dos 1 199 livros de literatura infantil selecionados para os AIEF, apenas 82 estão relacionados às temáticas afro-brasileira ou africana – 6,83% do total. Os dados foram coletados pelas pesquisadoras Carla Fernanda Brito Bispo e Heloísa A. Matos Lins.

Ainda que esse número demonstre o quanto é preciso combater institucionalmente a oferta de narrativas literárias únicas em sala de aula, é possível encontrar maneiras de valorizar a cultura negra a partir de práticas como contação de histórias, mediação de leitura, desenvolvimento de diários, varais poéticos, entre outras. Apoiadas em bons materiais, elas podem contribuir para o reconhecimento dos impactos do racismo.

Quais são as principais obras e os principais representantes da literatura afro-brasileira?

Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, é considerado o primeiro romance no qual um personagem negro ganha destaque na trama. O escravo Túlio é referência moral do texto e tem “[…] sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro […]”, conforme narrado por Tancredo, um homem branco. É preciso lembrar que os negros da época muitas vezes sequer eram vistos como seres humanos. Além disso, Firmina fazia jus à sua escrita contra-hegemônica, pois era mulher e negra.

Considerando as características propostas por Eduardo Duarte, além de Úrsula, outros livros podem compor a lista de principais obras da literatura afro-brasileira. São eles:

  • Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus;
  • Dionísio esfacelado (1984), de Domício Proença Filho;
  • Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins;
  • Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo;
  • Contos crioulos da Bahia (2004), de Mestre Didi;
  • Da Cabula (2006), de Allan da Rosa.

Há, ainda, outros autores, como Luiz Gama, com Trovas burlescas (1859), e Machado de Assis, que foi equivocadamente canonizado como escritor branco. Entre os destaques contemporâneos, podemos citar:

  • Cuti, com Negroesia (2010);
  • Cidinha da Silva, com Um Exu em Nova York (2018);
  • Ana Maria Gonçalves, com Um defeito de cor (2006);
  • Cristiane Sobral, com Não vou mais lavar os pratos (2011);
  • Lívia Natália, com Água negra e outras águas (2017).

A leitura dessas produções, se for feita com intencionalidade pedagógica, incentiva debates sobre questões raciais, abordando temas como silenciamento, representatividade, conceitos de raça, de cor e de etnia, heranças culturais, escravização, estereótipos, religiões de matrizes africanas e mais. Além disso, essa leitura viabiliza a circulação de obras e de escritores que, por muito tempo, foram negligenciados no mercado editorial.

Sugestões para trabalhar com os Anos Iniciais do Ensino Fundamental

As obras acima servem de estudo e de inspiração para os educadores que estão investindo em uma formação antirracista, mas podem exigir um conhecimento prévio que os alunos mais novos talvez não tenham. Veja, então, opções de leitura para valorizar a cultura negra que servem de estímulo a atividades e a brincadeiras nos Anos Iniciais:

  • Menino parafuso (2010), de Olivia de Mello Franco;
  • O menino coração de tambor (2013), escrito por Nilma Lino Gomes e com ilustrações de Maurício Negro;
  • Amoras (2015), de Emicida;
  • O pente penteia (2015), escrito por Olegário Alfredo e ilustrado por Iara Rachid;
  • Sulwe (2019), de Lupita Nyong’o;
  • O Pequeno Príncipe preto (2020), de Rodrigo França;
  • Black Power de Akin (2020), de Kiusam de Oliveira.

Por que a literatura negra é importante nas escolas?

A pesquisadora Keila de Oliveira pontua, em sua dissertação de mestrado, que a Lei 10.639/2003 é uma conquista resultante da luta e da resistência dos movimentos sociais e das pesquisas que buscam compreender o poder das medidas socioeducativas na neutralização das marcas deixadas pelo preconceito e pela discriminação.

Diante disso, ela investigou de que maneira os livros de literatura auxiliam os professores na construção de identidades raciais das crianças que frequentam o Ensino Fundamental I.

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Entre os resultados, a pesquisadora identificou que trabalho em equipe, elaboração de textos, apresentações de teatro e confecções de cartazes e de bonecas abayomis (símbolo de resistência negra e de tradição) são atividades que permitiram às crianças criarem e recriarem sua identidade social. “[…] conforme iam ouvindo e discutindo sobre as histórias contadas, [elas] faziam relação com suas experiências, suas culturas e sua(s) própria(s) histórias”, detalha Keila em seu trabalho.

A autora ainda afirma que os pequenos são curiosos sobre a cor de sua pele, sobre o seu cabelo e sobre suas diferenças, e que o professor precisa incluir, no seu trabalho diário, discussões e práticas antirracistas.

Nesse caso, recorrer ao universo literário focando na literatura afrodescendente e nos escritores negros brasileiros é uma alternativa necessária, pois é preciso “[…] que as crianças vejam personagens negros como protagonistas de suas histórias infantis, dos desenhos animados, nos programas de televisão, nos filmes, nas propagandas […]”, reforça Keila em seu trabalho Letramento racial crítico nas séries iniciais do Ensino Fundamental I a partir de livros de literatura infantil: os primeiros livros são para sempre.

Ou seja, a literatura afro-brasileira serve de instrumento para ajudar a romper o círculo vicioso do racismo ao permitir que o aluno negro se reconheça por meio dos livros, inclusive em papéis sociais importantes. Isso possibilita seu empoderamento para defender sua ancestralidade e o legado de seu povo.

Mas é importante lembrarmos que essa literatura também serve de instrumento transformador para todos os demais alunos e para a comunidade em geral, pois proporciona o reconhecimento da potência atingida quando os negros passam a ocupar mais espaços e a trazer outras perspectivas para a nossa sociedade.

Referências bibliográficas:

BISPO, C. F. B; LINS, H. A. M. Literatura afro-brasileira e africana para a infância: que histórias se dão a contar-praticar na escola? Caderno de Letras, Pelotas, n. 38, p. 267-284, set./dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/cadernodeletras/article/view/19436/12601. Acesso em: 13 nov. 2023.

DUARTE, E. A. Por um conceito de literatura afro-brasileira. Literafro, 2011. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/148-eduardo-de-assis-duarte-por-um-conceito-de-literatura-afro-brasileira. Acesso em: 13 nov. 2023.

OLIVEIRA, K. Letramento racial crítico nas séries iniciais do Ensino Fundamental I a partir de livros de literatura infantil: os primeiros livros são para sempre. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2019. Disponível em: https://tede2.uepg.br/jspui/bitstream/prefix/2884/1/Keila%20de%20Oliveira.pdf. Acesso em: 13 nov. 2023.

REIS, M. F. Úrsula, capítulo I – Duas almas generosas. Literafro, 2018. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/24-textos-das-autoras/1681-maria-firmina-dos-reis-ursula-capitulo-i-duas-almas-generosas. Acesso em: 13 nov. 2023.

SOUZA, R. J.; MARTINS, I. A. Educação infantil e literatura: um direito a sonhar, ampliar e construir repertório. Conjectura: filosofia e educação, Caxias do Sul, v. 20, n. especial, p. 221-239, 2015. Disponível em: https://www.fct.unesp.br/Home/Pesquisa/cellij/educacao-infantil-e-literatura–martins-neto-e-souza—2015.pdf. Acesso em: 13 nov. 2023.

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